O DÉDALO: PARA FINALIZAR O SÉCULO XX
E PARA ENCARAR O SÉCULO XXI
Ivan Bilheiro
Obra do mês do Sempre um Livro, o texto de Georges Balandier (1999), cujo subtítulo indica a intenção de “[…] contribuir para sair dele [o século XX] de forma menos confusa, e menos resignada ao abandono das responsabilidades” (p. 11), serve também na busca de compreensão do verdadeiro vórtice que é a vivência neste novo século XXI, mesmo já em sua segunda década. É leitura, portanto, para encarar este século como serviu para finalizar o passado. Obsolescências à parte, como o fato de tratar de “tubos catódicos” que já não são o ápice da tecnologia em uso para os televisores contemporâneos, a obra apresenta, entretanto, noções gerais sobre a sociedade da “sobremodernidade” (expressão mais usual de Balandier para o que, mais comumente, é designado por “era pós-moderna”) que são muito atuais. Falar do homo cathodicus (p. 217) para denunciar a midiatização generalizada, o aprisionamento da política pelos “dédalos” da comunicação, é recurso válido, à revelia da tecnologia ultrapassada a que a metáfora faz referência.
Como antropólogo que é, Georges Balandier apresenta um dissecamento de certos comportamentos não notados por conta da familiaridade que, por vezes, surpreendem até pela irreverência. É assim o caso do ecologismo que gera atitudes de “veneração do verde”, em que a paisagem e a natureza são produtos de vendas para lugares fora do caos da cidade, revelando mais uma faceta do poder que o mercado tem de transformar tudo em mercadoria na sobremodernidade. Também é de destacar, neste caso, a citação sobre o “tratamento do cadáver” (p. 115), que permite simular o estado de sono em vida. Falando deste ritual que permite escamotear a morte, Balandier surpreende o leitor com uma nova visão sobre o que, usualmente, não seria observado. Nesta linha, plásticas e cirurgias estéticas são afirmadas como “forma e camuflagem da idade biológica” (p. 114) e a exaltação quase doentia de figuras muito aparentes da mídia, especialmente do meio artístico, são comparadas às atitudes de sacralização. Lembra, com esta forma de surpreender pela análise, por exemplo, o peculiar olhar sobre os comportamentos humanos (com destaque especial para o sexo) apresentado pelo zóologo Desmond Morris em seu livro O macaco nu (1996).
O dédalo (1999) é uma visão e uma análise sistêmica, embora não sistematizada. Seu autor apresenta uma perspectiva lúcida e aprofundada, baseada e dialogando com grandes pensadores contemporâneos, e percorre, indiscriminadamente, as mais diversas facetas da contemporaneidade. Nesta análise ampla, as divisões excessivas e sistemáticas seriam incômodos, posto que muito artificiais. Daí o fato de o texto percorrer, por vezes, em um mesmo capítulo, assuntos que seriam focos específicos de outros, ou haver temas constantes em todos eles.
Ante ao cenário de constante movimento, de obsolescência, mudança e ruptura, Balandier ainda crê na possibilidade de o homem comum se orientar. Absolutamente realista com relação ao caos em que a sobremodernidade lança a todos, o livro O dédalo pretende que sejam estimuladas ações no sentido de encarar “a obrigação, aparentemente paradoxal, de civilizar os ‘novos’ novos mundos oriundos da obra civilizadora” (p. 243). Por “novos” novos mundos, o antropólogo francês se refere às novas formas de criar o real estabelecidas a partir das criações do homem em sua ação de “civilizar o mundo”, como, por exemplo, o império das imagens (destaque para a televisão) (p. 130 ss), a ruptura da crença arraigada por uma religiosidade difusa (p. 164), e a temível depressão da vida política ante a uma aparente impossibilidade frente ao complexo (p. 219).
Com reflexões políticas, antropológicas, históricas, sociais e mesmo religiosas, a obra de Georges Balandier apresenta uma tenaz visão esboçada às portas do século “sobremoderno” que vigora, e permite a contemplação do aprofundamento de diversos “pontos críticos” por ele apontados à época, bem como o estímulo para a reflexão e, como sugere o autor, seu combate.
Da mensagem do livro, para encerrar, deve-se refletir: o labirinto criado pelo Dédalo da mitologia grega, a fim de aprisionar o Minotauro, é obra tão grandiosa quanto as criações obtidas pela potência humana. Mas perigosas, posto que permitem a confusão em seus meandros, a apatia, a sensação de derrota. A metáfora dá a mensagem: criados os labirintos, é pela mesma capacidade que se deve encará-los.
Referências
BALANDIER, Georges. O dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
MORRIS, Desmond. O macaco nu: um estudo do animal humano. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.