VOZ DE SALOMÉ: Ah! Beijei a tua boca, Iokanaan, beijei a tua boca. Havia um gosto amargo em teus lábios. Seria o gosto de sangue?… Não, provavelmente fosse o gosto do amor… Dizem que o amor possui um gosto amargo. Mas o que isso importa? O que isso importa? Beijei tua boca, Iokanaan, beijei tua boca.
(No clímax da peça Salomé)
Uma das peças mais conhecidas de Oscar Wilde, Salomé foi escrita no ano de 1891, quando o escritor passou uma temporada em Paris. De acordo com Robert Ross, o tema para a peça já martelava a cabeça de Wilde desde, pelo menos, sua visita a uma exposição do pintor francês Gustave Moreau voltado para o mesmo assunto.
Salomé, chamada de tatuada (tela de Gustave Moreau, de 1871)
Inspirada em uma história presente em passagens bíblicas (Mateus 14: 3-11 e Marcos 6: 21-28), e escrita originariamente em francês [1], a peça conta, em um único ato, com os requintes típicos da elaboração estética de Wilde, a história de uma festa celebrada no palácio do tetrarca Herodes Antipas. Nesta festa, Salomé se revela apaixonada pelo profeta Iokanaan (mais conhecido como São João Batista), que estava preso no palácio por ter denunciado publicamente o casamento incestuoso entre Herodes e Herodíade, a qual fora casada com o irmão do tetrarca, bem como a corrupção reinante no governo.
A tensão da peça é grande: há sinais de que algo ruim ocorrerá, os quais se manifestam todo o tempo através de falas dos personagens principais ou mesmo os secundários, como alguns guardas.
Um aspecto curioso é a forma como os judeus são representados: há alguns deles no enredo, e são retratados como confusos com relação à própria religião, discutindo se os anjos existem ou não, se os milagres do Salvador são verdadeiros ou não (e de qual tipo), etc. Uma passagem que retrata essa característica é a fala do personagem “Quinto judeu”: “Pode ser que aquilo que chamamos de mal seja o bem, e o que chamamos de bem seja o mal. Não se sabe nada de nada”.
Há um funcionário do palácio, o jovem sírio Narraboth, que é encantado por Salomé. Também o tetrarca Herodes não consegue tirar os olhos da moça, à revelia das constantes repreensões de sua esposa. Mas ela se revela apaixonada pelo profeta Iokanaan e suplica-lhe um beijo, o qual é negado veementemente. Iokanaan a repele, e a aconselha a procurar o Senhor (Jesus) para a redenção de seus pecados.
Aproveitando-se da situação da festa (que requer o entretenimento dos convivas), e do insistente pedido de seu tio e padrasto Herodes, Salomé faz a dança dos sete véus, dança esta que foi “comprada” pelo tetrarca com a promessa de dar à jovem tudo o que ela desejasse, até a metade de seu reino.
Salomé, então, pede a cabeça de Iokanaan em uma bandeja de prata. Embora Herodes tente, com as mais diversas e ricas ofertas, dissuadir sua enteada e sobrinha da solicitação feita, a promessa não pode ser quebrada e a insistência
“O clímax” (ilustração de Aubrey Beardsley para o texto da peça “Salomé”)
de Salomé, acrescida das comemorações da mãe (profundamente incomodada com as falas do profeta prisioneiro, que a fazem encarar a imoralidade da corte em que vive), levam ao desfecho: a cabeça do profeta é entregue a Salomé em um escudo (e não uma bandeja) de prata. Ela, então, pega a cabeça e beija a boca de Iokanaan, alcançando seu objetivo e atingindo um êxtase doentio.
Vendo a cena, Herodes se exaspera e ordena que seus soldados acabem com a vida de Salomé, a qual é esmagada pelos escudos dos funcionários do tetrarca.
Uma peça que captura o leitor/espectador por conta da tensão entre os desejos e seus objetos, bem como pelas repreensões e pelos ardis em função destes desejos…
______________
[1] A primeira tradução para o inglês foi feita, em 1894, por Lord Alfred Douglas, o mais conhecido amante de Oscar Wilde.