por Pedro Uchôas
“Ser miserável entre os miseráveis,
– carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias.”
O homem, desde muito tempo, segue em conflito interno, em uma disputa infindável, em uma guerra contra o seu próprio eu. Estar em vida significa não apenas estar vivendo, mas sim arcar com os pesos da existência como ser humano. Existir como ser humano perpassa pelas dificuldades da própria natureza do homem, e daí nascem conflitos causadores de desespero. Não se pode ser apenas bom ou mesmo apenas mal. Por dentro de cada um existe a vontade, pelo menos momentânea e circunstancial, de ter compaixão, de ser útil, de poder ajudar alguém e possuir uma natureza de altivez. Mas, por outro lado, a raiva, os impulsos violentos e todo o tipo de ódio também compõem a realidade de um ser-que-vive e que se percebe como tal.
Em “O médico e o monstro”, de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886 com o título de “O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, o conflito é figurado na pele do médico Dr. Jekyll e do curioso, assustador e frio Mr. Hyde. Com o foco na pessoa de Mr. Utterson, personagem que se inquieta com os estranhos acontecimentos em torno de Dr. Jekyll, a novela identifica o conflito da dualidade da natureza humana e mostra a tentativa falha de isolamento e de aniquilamento da má natureza.
Mr. Utterson, de “áspero semblante; frio, escasso e enleado em palavras; arredio em sentimentos; franzino, comprido; enxovalhado; lúgubre; mas ainda assim algo simpático”, encontra-se em estado de pasmo ao se deparar com um ato de pura maldade, ao ver Mr. Hyde pisotear uma criança em plena rua por motivos que ele mesmo não poderia dizer, injustificáveis. Ao perceber o que acontecia, logo se pôs a investigar que criatura seria aquela capaz de fazer algo de tamanha monstruosidade.
Mr. Hyde, por sua vez, tantas vezes descrito como “carro de Juggernaut infernal”; possuidor de um “olhar assustador”, “de uma deformidade qualquer” ;”altaneiro como o Satanaz”; não parecia se preocupar com seus atos, demonstrando uma frieza sem tamanho.
Grande amigo de Jekyll, Mr. Utterson começou a se preocupar com o médico, uma vez que este, a partir do ataque de Hyde, parecia possuir uma ligação com o cruel homem e passou a se isolar e a evitar encontrar os antigos amigos. O doutor era um grande admirador das boas companhias, e de repente não mais se preocupava como antes com os encontros costumeiros com aqueles com quem matinha uma boa relação.
Após um período de tempo, um assassinato marcará a narrativa. A cruel e “simiesca” agressão a Danvers Carew, atribuída a Mr. Hyde, coloca Mr. Utterson em uma dedicada investigação acerca do motivo daquelas ações cometidas pela “criatura assustadora e causadora de pasmo”, já que ele possuía, aparentemente, uma ligação com o seu amigo Jekyll. Stevenson, para demonstrar como a personagem de Utterson seria incumbida da investigação de Mr. Hyde acerca do que ele era, chega a escrever em uma das falas daquele: “Se ele é Mr. Hyde, eu serei Mr. Seek – pensou ele.” Fica aqui explícita a própria construção de uma personagem que será explicada futuramente. Hyde viria do inglês “hide”, que significa “esconder-se”. Portanto, desde então, a personagem de Hyde assume a identidade de algo que permanece escondido, como uma natureza oculta em cada homem, e “seek”, no português, significa “procurar”. Daí um jogo de procurar e esconder que se estabelece entre as duas personagens.
Logo após o assassinato de Carew, que fora espancado brutalmente por uma bengala que, de tanta violência, se partiu, Utterson identifica o objeto utilizado na investida violenta como uma bengala que ele mesmo havia dado a Jekyll, demonstrando realmente que eles possuíam algum tipo de ligação.
Jekyll passa a desaparecer e torna-se cada vez mais inconstante. A preocupação que se desenvolve por ele durante toda a narrativa começa a assumir um alto grau, e Utterson vai até a casa do médico para inspecionar o seu desaparecimento repentino. Um pouco antes, o advogado Mr. Utterson recebera uma carta de seu amigo que só poderia ser aberta após a morte do mesmo. O que seria tal carta? Por que tanto sigilo? Estaria Jekyll perto da morte?
Lanyon, também amigo do doutor, falece e deixa um suspense no ar ao demonstrar uma estranha e repentina queda da própria vontade de viver. Ele parecia assustado e impactado de uma forma brutal. Em conversa com Utterson, após testemunhar um fato em que Jekyll estaria envolvido, logo antes de morrer, chega a dizer:
Não quero mais ver nem ouvir falar no Dr. Jekyll, disse ele em voz alta e insegura. Estou farto dessa pessoa; e suplico-lhe que me poupe qualquer alusão a quem considero morto… Algum dia, Utterson, depois que eu estiver morto, você talvez venha a saber a razão e a não razão disto. Eu não posso lhe dizer.(STEVENSON, Robert Louis, pág.309).
Após tais acontecimentos e investigações, Jekyll desaparece por um longo período de tempo e Poole (criado de Jekyll) não tarda a visitar Utterson. Sua reivindicação era a ajuda do advogado para arrombar a porta do laboratório onde o doutor havia desaparecido há muito tempo. A porta é arrombada e lá dentro os dois encontram Hyde caído e portando algumas cartas. Uma delas, escrita por Lanyon, explica muito bem o acontecimento que tanto o assustara: a transformação de Hyde em Dr. Jekyll. Ao assistir o acontecimento assustador, Lanyon teria declarado a morte do amigo.
Por fim, Hyde e Jekyll eram a mesma pessoa. Em uma das cartas caída junto ao corpo da monstruosidade falecida, o doutor deixou escrita a explicação para a sua experiência química. Ao perceber o quanto o ser humano é dual, ele teria tentado criar uma tintura que pudesse isolar aquilo de ruim que existe no homem. As doses de tal tintura começaram a pedir cada vez mais intensidade de uso e, perdendo o controle, o esforço agora não era mais o de isolamento da parte má, mas sim o resgate daquilo que existia de bom dentro dele. Sua natureza má gritava e clamava por espaço, e a supressão do seu eu tão repudiado criava uma vontade de liberdade.
Durante dois meses, fui contudo fiel à minha determinação; durante dois meses levei uma vida de tamanha severidade como jamais tinha podido atingir, e tive por compensação o beneplácito da minha consciência. Mas o tempo enfim começou a obliterar a viveza dos meus receios; os louvores da consciência já iam sendo coisa banal; comecei a ser torturado por agoniados anseios, como se Hyde lutasse em mim para libertar-se; e, por fim, num momento de fraqueza moral, tornei mais uma vez a preparar e a sorver a beberagem transformadora. (STEVENSON, Robert Louis, pág.343).
A utilização constante da droga transformara Jekyll em um ser de dupla realidade: ao dormir era o médico, ao acordar era o monstro. Aquilo o consumiu de tal forma que não mais suportava viver sabendo que sempre estaria dividido entre os dois seres.
A todas as horas do dia ou da noite, assaltava-me um tremor premonitório; acima de tudo, se eu dormia, ou sequer cochilasse um momento na minha cadeira, era sempre como Hyde que me acordava. Sob a tensão de tal sentença contínua e iminente e pela insônia a que agora eu me condenara, ai!, em grau ainda maior do que eu julgara possível a homem, tornei-me, na minha própria pessoa, uma criatura roída e esgotada pela febre, extremamente débil de espírito, e só preocupada com um pensamento: o horror pelo meu outro eu. Mas quando eu dormia, ou quando tinha fim a virtude do remédio, eu saltava quase sem transição (pois as dores da transformação eram diariamente menos acentuadas) na posse de uma fantasia transbordante de imagens aterradoras, de uma alma a arder de ódios infundados, e de um corpo que não parecia o bastante forte para conter as tempestuosas energias da vida. (STEVENSON, Robert Louis, pág. 348).
Não suportando mais existir e estar constantemente dividido entre um homem de boa índole e uma criatura próxima ao próprio Satanaz, Jekyll põe fim à própria vida.
A modificação do título, ao se traduzir a obra do inglês, deu-se por motivos de venda e a partir do intuito de despertar um maior interesse pela novela, uma vez que um longo e pouco atrativo nome (“O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”) poderia dar lugar à um novo, sensacionalista e mais atrativo “O médico e o monstro”.
Sendo assim, à título de exposição, cito o final da carta de Jekyll:
Daqui a meia hora, quando eu de novo e para sempre reassumir essa odiosa personalidade, sei que, derreado nesta minha cadeira, estarei tremendo e chorando, ou que então continuarei, com a mais viva e medrosa acuidade, a caminhar de cá para lá nesta sala (meu último refúgio terreno) e a prestar ouvidos ao menor ruído de ameaça. Hyde morrerá no cadafalso, ou encontrará coragem para libertar-se no último instante? Só Deus sabe; e isso pouco me preocupa; esta é a verdadeira hora da minha morte, e o que está para suceder refere-se a outrem que não eu. (STEVENSON, Robert Louis, pág. 350).
E após a leitura e o estudo da obra, Hamilcar de Garcia dirá: “Mais do que um estudo sobre o desdobramento da personalidade e um símbolo das lutas entre o bem e o mal, o caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde pode ser reconhecido como uma aguda síntese da própria alma humana.” (GARCIA, Hamilcar, pág. 278).
Aqui, pois, no momento em que largo as teclas do computador e termino o texto, ponho fim à vida do desventurado Henry Jekyll.