Arquivo do dia: 22 de abril de 2012

Sargento Garcia: a marginalidade homoerótica e filosófica

Como dito pelo Ivan no último post, o Sempre um livro agora está lendo a obra Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu.

Escrevi um pouco sobre um conto em especial desta obra, a saber, Sargento Garcia e fiz algumas reflexões acerca do conto e da condição do homossexual e do estudante de Filosofia.

Sargento Garcia: a marginalidade homoerótica e filosófica

O conto “Sargento Garcia”, parte integrante do livro “Morangos Mofados” de Caio Fernando Abreu é tido por muitos como uma bandeira do homoerotismo. Ele por si só, adapatações cinematográficas e vários estudos denunciam essa característica do conto. No entanto, o que muitas vezes é esquecido é a possibilidade de contato dessa marginalidade do homoerotismo, enquanto necessidade de se afirmar frente os preconceitos da sociedade, com a marginalidade da Filosofia, em especial do estudante de Filosofia, frente a essa mesma sociedade. O que pretendo aqui é tentar explicitar esse contato, e mostrar como ao mesmo tempo distantes e sem uma conexão, o homoerotismo e a Filosofia também podem ser, em alguns aspectos, muito próximos.

O conto, a exemplo de vários outros contos do mesmo autor, tem uma escrita bem clara e direta, ainda que ocorram divagações durante as falas das personagens e do próprio narrador, Caio F. diz muito bem o que quer dizer sem muitos preconceitos ou “não me toques”.

Tudo começa com uma apresentação ao Exército – experiência comum e necessária a todos os homens de dezoito anos – onde a personagem que dá nome ao conto, Sargento Garcia, demonstrando-se alguém rude e severo chama pelo nome de Hermes, a outra personagem de destaque no conto. Durante um longo diálogo entre ambos, a atmosfera do lugar também vai sendo descrita pelo autor. A ênfase é no mau cheiro dos corpos dos homens nus, misturados a bosta de cavalo e à severidade de Sargento Garcia.

Um momento importante do diálogo que pretendo destacar é aquele que está relacionado com a Filosofia:

– Trabalha?

– Sim, meu sargento – menti outra vez.

– Onde?

– Num escritório, meu sargento.

– Estuda?

– Sim, meu sargento.

– O quê?

– Pré-vestibular, meu sargento.

– E vai fazer o quê? Engenharia, direito, medicina?

– Não, meu sargento.

– Odontologia? Agronomia? Veterinária?

– Filosofia, meu sargento. (ABREU, 1995, p. 61).

A reação de Sargento Garcia diante da escolha do curso de Hermes é singular e sintomática, logo em seguida ele diz:

– Pois, seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à pátria. Seu certificado fica pronto daqui a três meses. Pode se vestir. – Olhou em volta o alemão, o crioulo, os outros machos. – E vocês, seus analfabetos, deviam era criar vergonha nessa cara porca e se mirar no exemplo aí do moço. Como se não bastasse ser arrimo de família, um dia ainda vai sair filosofando por aí, enquanto vocês vão continuar pastando que nem gado até a morte. (ABREU, 1995, p. 61-62).

Após a dispensa, Hermes vai caminhando de volta pra casa, mas no meio do caminho vê um Chevrolet antigo parar na sua frente. Era o Sargento Garcia. Agora sem a mesma severidade que demonstrava no quartel, o bigodudo e másculo sargento oferece uma carona a Hermes, este, meio sem jeito, entra no carro.

Dentro do carro a relação entre os dois, que até então era hierárquica e respeitosa, vai começando a se suavizar e no momento em que Sargento Garcia começa a passar a mão na coxa de Hermes o caráter homoerótico do conto é explicitado de vez.

Em meio às passadas de mão e afins, a conversa de ambos gira em torno do fato de Hermes ter escolhido a Filosofia como curso. Sargento Garcia se mostra interessado nisso e diz que apesar de ter de ser durão no quartel, enquanto pessoa ele gosta da tal Filosofia.

Hermes então fala sobre Leibniz, filósofo racionalista que desenvolveu a teoria das mônadas, com certa empolgação. Sargento Garcia até se interessa, mas meio que voltando à sua realidade – que é o quartel, a vida dura e cinza – diz que lá não tem nada desse negócio de “mônicas” (sic) não. A troca de mônadas por mônicas parece ser intencional, o autor tenta deflagrar ainda mais, de maneira sutil, a estranheza que a Filosofia e certos conceitos filosóficos causam naqueles que vivem à margem dela.

O contato dos dois dentro do carro vai esquentando e Sargento Garcia sugere que eles vão a um lugar mais reservado e confortável. É aí que entramos no ápice do conto. Sargento Garcia leva Hermes a nada mais, nada menos do que uma “casa de quartos”, comandada pela travesti Isadora.

Ela mostra-se muito conhecida do Sargento Garcia, o que indica que o sargento é um cliente assíduo do lugar. Isadora conduz o casal até o quarto nº 7 e então é descrito o ato sexual dos dois, sem muito pudor. Como disse acima, Caio Fernando Abreu não parece querer se enquadrar em uma escrita politicamente correta, asséptica e isenta de termos aparentemente horrorizantes.

Hermes tem então a sua primeira vez. No fim do conto, é descrita a volta pra casa do jovem e ao deparar-se com uma estátua grega no meio da rua ele vai lembrando nomes de deuses gregos, até que lembra o seu:

Zeus, Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas Atena ou Minerva, Posêidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. Tocando o pulso com os dedos podia perceber as batidas do coração. (ABREU, Caio F., 1995, p. 70).

Nesse momento se dá a epifania completa de Hermes. Ele, que nunca havia transado, se descobriu de vez homossexual. E ao lembrar que Hermes era ladrão e andrógino se identifica de vez com seu próprio nome. A trajetória de Hermes do quartel ao quarto de hotel é a trajetória de alguém que se descobre e se revela, no jargão do senso comum, Hermes literalmente “saiu do armário”. E a importância disso para o conto é fundamental. Tanto que na última frase do conto Hermes nos diz: “O bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fumar.” (ABREU, 1995, p. 70).

Hermes começar a fumar é uma metáfora para dizer que Hermes agora assumirá de vez sua condição sexual. O jovem estudante de Filosofia experimentou e gostou da coisa.

Essas reflexões acerca do homoerotismo dentro do conto são geralmente as mais exploradas, afinal, o ponto central do conto é mesmo este. No entanto, abusando da marginalidade e sendo marginal dentro do marginal, proponho uma leitura que relacione essa dificuldade de aceitação perante a sociedade em relação ao homoerotismo, com a mesma dificuldade em relação ao estudante de Filosofia (que, no caso, pode ser representado por este que vos fala).

Ao escolher Filosofia como futuro curso da personagem Hermes, Caio Fernando Abreu poderia ter feito várias outras escolhas, como, por exemplo, Letras, o curso que talvez tivesse mais proximidade com o próprio autor. No entanto, a escolha da Filosofia, segundo minha leitura, não foi feita sem propósito. Eu e qualquer outro estudante de Filosofia podemos dizer melhor do que ninguém como são únicas e diferentes as reações do senso comum ao escutarem de nós que fazemos Filosofia.

Nos dias de hoje, parece existir um preconceito velado a esta resposta. As pessoas estão esperando inúmeras respostas, mas Filosofia não. A reação mais comum e imediata das pessoas é soltar um “legal” desinteressado ou coisa que o valha e logo mudar de assunto, desconversar.

Pensemos um pouco: estas reações, guardadas as devidas proporções, não são bem semelhantes com as reações das pessoas frente aqueles que se dizem gays, lésbicas, bissexuais ou transsexuais?

Esse é o meu ponto. O preconceito velado frente a estudantes de Filosofia e homossexuais, apesar de tudo, ainda existe nos dias de hoje e a intenção de Caio Fernando Abreu, ao escolher a Filosofia como futuro curso de Hermes, talvez tenha sido nos mostrar também isso.

Antes que apareçam interpretações equivocadas sobre esta minha reflexão é bom esclarecer bem as coisas: não quis dizer em nenhum momento que o homoerotismo e a Filosofia têm de servir de condição de possibilidade um para o outro. Sei que isso seria uma interpretação absurda, mas o mundo atual tem suas absurdidades, é bom lembrar. Homoerotismo é uma coisa, Filosofia é outra. Os pontos de contato, segundo a minha leitura, são a marginalidade de ambos e o preconceito velado também sofrido por ambos.

A opção sugerida pelo autor no conto, para aqueles que sofrem preconceito por conta de suas escolhas sexuais é a de se entregar de fato a esta condição, assumir de vez isso e enfrentar de frente todo e qualquer preconceito que possa surgir. Mas e os estudantes de Filosofia, como devem encarar esse preconceito velado que sofrem?

A exemplo do que fez Hermes, chega uma hora que não dá mais pra ficar se escondendo dos outros e iludindo a si próprio, chega uma hora em que é necessário assumir efetivamente as suas escolhas e conviver com elas.

Ser estudante de Filosofia é sinônimo de desprestígio perante a sociedade, ao senso comum. Ser estudante de Filosofia é muitas vezes ser taxado de louco, lunático ou até mesmo (e aí quem sabe já entraríamos em uma nova discussão, em um novo preconceito) de maconheiro.

Frente a todos esses rótulos e preconceitos, o estudante de Filosofia, se realmente quer afirmar essa sua condição, deve ter a atitude de encarar tudo isso de frente, como se fossem apenas comentários sem nenhum sentido e fundamentação que não influem de fato na caminhada do estudante de Filosofia (como se fossem?).

Parafraseando Hermes e lembrando o dia que resolvi assumir de fato a Filosofia, encerro o texto dizendo que: amanhã, decidi, amanhã começo sem falta a ler.

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

INTERNET

http://bibliotecadigital.unec.edu.br/ojs/index.php/unec02/article/viewFile/278/352

http://www.fileden.com/files/2009/4/27/2420624/Artigos/EROTISMO%20E%20EPIFANIA%20EM%20SARGENTO%20GARCIA%20DE%20CAIO%20FERNANDO%20ABREU_MARCELO%20BARBOSA%20PEIXOTO.pdf

FILMOGRAFIA

Sargento Garcia, curta-metragem. (35mm, cor, 15 min, 2000).

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